Há filmes que começam, você olha as primeiras cenas meio cético porque grandes filmes não são a regra. Então, você para, pede o cérebro para adotar outra postura e prestar mais atenção, pois ali sim, há um grande filme que precisa ser visto atentamente e já fica se imaginando assistindo àquele filme a segunda, terceira ou quarta vez. É assim o filme “Les glaneurs et la glaneuse” de Agnès Varda, de 2000. A tradução é “Os respigadores e a a respigadora”. Respigar é o ato de catar as sobras. Na tradição dessa prática, desde a Idade Média, após a colheita, os respigadores (na verdade, a maioria eram mulheres) invadiam os campos – de trigo, batata, uva, maçã, azeitona, amêndoas, figos, couves, tomates e até ostras – para catar aquilo que foi ceifado mas não foi recolhido na colheita por alguma razão, algo como a xepa da colheita, no afã óbvio de que absolutamente nada fosse desperdiçado. Sabia que em três hectares de maçã, após a colheita pelo menos 10 toneladas ficam por apanhar? Um exemplo para nós que somos viciados em desperdícios e abstêmios em solidariedade (sim, pois a respiga só ocorre em propriedades privadas). Tanto que eu nem conhecia esse verbo em português “respigar”. Os verbos que usamos mostram nossas ações. Se não sabemos o que é respigar é porque tal ação não faz parte de nossa rotina. Os muitos que sabem bem o que é respigar por aqui, como naquele curta-metragem brasileiro Ilha das Flores, também não sabem o que é respigar por falta de vocabulário e nem querem saber, estão preocupados com o ronco do estômago vazio. Na França não é preciso ser miserável para respigar, como aqui no Brasil. Quem já viveu o horror da guerra e suas conseqüências está vacinado contra o desperdício. Há mesmo leis francesas desde o século XVI autorizando que, após a colheita, quem quiser pode invadir o campo para fazer a respiga (há quem faça por necessidade, há quem faça a respiga por prazer e até quem faça por ideologia, não importa a razão, todas são permitidas). Respigar é um direito. As sobras são de quem pegar. Após a colheita ou o descarte, é dono aquele que respiga. Por extensão e analogia, se torna direito de respigadores qualquer lixo ou container de descartes nas grandes cidades, pois não se respiga só no campo. Não se chama saque ou roubo a subtração do conteúdo do depósito de lixo de um supermercado, por exemplo.
Voltando ao filme, ele começa situando o espectador ao mostrar esse quadro abaixo de Jean-François Millet, Les Glaneuses, que se encontra atualmente no Museu d’Orsay, em Paris. Há outro quadro famoso sobre o tema chamado La Glaneuse, de Jules Breton, que se encontra atualmente no museu da cidade francesa de Arras. Aliás, Jules Breton tem vários quadros com o tema, um belíssimo chamado Le Rappel de Glaneuses, que está também no Musée d’Orsay, em Paris. No museu da cidade de Villefranche-Sur-Saône há outro quadro magnífico sobre o tema de Edmond Hédouin “Les glaneuses fuyant l’orage” (As respigadoras fugindo da tormenta). Há também poesias populares e eruditas sobre os respigadores e certamente há canções e romances a respeito, pois ações importantes vivem e se eternizam nas artes do país. A França vê beleza no ato de respigar. Aqui, vemos vergonha, como se evitar o desperdício a todo custo fosse coisa exclusiva dos desvalidos. Temos vergonha do que é correto e aplaudimos o que não presta, às vezes. Respigar também é coisa que se faz com nossas viagens, discos, amores, livros e toda a nossa vida. Depois de uma viagem, por exemplo, olhar as fotos é como respigar a viagem. Olhar com atenção o que já vimos centenas de vezes é respigar aquele lugar. Fazer tudo o que sempre fizemos como se estivéssemos fazendo pela primeira vez até que a poesia e a beleza renasça é respigar. Respigar é negar a existência do inútil. Respigar é recuperar. Respigar não é obter o que não presta, pois até na respiga se seleciona e se descarta. O artista que faz sua obra com produtos descartados é um glaneur, pois o mundo inteiro é uma colheita a ser respigada. Pensar seriamente no que nos incomoda e no que nos alegra e se sentir mais incomodado e mais feliz do que nunca com cada uma das coisas é respigar. Respigar é não deixar escapar nada da vida que nos foi dado. Respigar é agir depois da colheita, até que nós mesmos sejamos ceifados.
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Só conhecia o respigar de Rute, a personagem bíblica que se casou com o dono do campo. E agora, só agora, descubro que respigar é uma filosofia de vida. Meu Deus, como eu adoraria ter escrito este texto! E agregado esse valor novo ao que já vivi sem respigar.
Pensando bem, este se parece mesmo muito com seus belos textos, Ana Maria. Volte sempre ao meu blog, ultimamente tão abandonado pelo dono.
O pessoal que cata criptomoedas pela internet, seriam respigadores digitais? Seria um bom tema para um artigo ou até um ensaio (um livro só sobre isso seria chato), se o pessoal que gosta tanto das criptomoedas tivesse cultura além da informática e da economia…